Geopolítica da doença. Entrevista com Damián Verzeñassi

Fonte: Pixabay

09 Agosto 2022

 

Damián Verzeñassi esteve em Montevidéu a convite da Sociedade Uruguaia de Medicina Familiar e Comunitária (Sumefac). Participou de uma oficina com médicos, fez uma palestra no auditório do Sindicato dos Médicos e estreou como docente em um novo curso sobre saúde socioambiental da Faculdade de Medicina da Universidade da República. Um grupo da Sumefac está atualmente trabalhando em Rocha, em meio a comunidades afetadas pelos arrozais. “Os moradores dizem que querem saber o que está acontecendo com eles, porque estão tendo problemas de saúde recorrentes que não tinham antes. A mesma coisa que acontecia na Argentina. Em toda a América Latina nos deparamos com um sistema muito azeitado, que vem sendo implementado metodicamente há décadas”, disse em entrevista a Brecha.

 

A entrevista é de Daniel Gatti, publicada por Brecha, 05-08-2022. A tradução é do Cepat.

 

Especialista em medicina integral, diretor do Instituto Nacional de Saúde Socioambiental (INSSA) da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nacional de Rosário, Verzeñassi também é membro da Associação Latino-Americana de Medicina Social e da União de Cientistas Comprometidos com a Sociedade e a Natureza da América Latina. Em 2016, foi o único cientista desta parte do mundo que testemunhou no tribunal internacional que julgou, em Haia, as atividades poluidoras da transnacional Monsanto.

 

Cerca de seis anos antes, ele havia começado a promover e coordenar uma ideia original para a América Latina: a criação dos acampamentos de saúde. Como prática final, os estudantes deviam ir durante uma semana a algum território para avaliar a saúde da população local implicada. “A nossa intenção era que pelo menos uma vez em sua carreira o estudante tivesse a oportunidade de trabalhar em território, entrar em contato com seus habitantes, ver o que realmente acontecia nas populações”, contou a Brecha. Durante a década que durou a experiência, mais de 40 acampamentos de saúde foram realizados em povoados rurais com menos de 10.000 habitantes das Províncias de Santa Fé, Córdoba, Entre Ríos e Buenos Aires. A grande maioria vive nos “povoados fumigados”, onde seus habitantes vivem, estudam e trabalham a uma distância muito curta de onde os produtores de trigo, milho e principalmente soja pulverizam suas lavouras com herbicidas e pesticidas.

 

Em geral, os estudantes iam às casas das pessoas, fazendo um levantamento sobre suas condições sanitárias. Coletavam uma enorme quantidade de dados, que serviam de base para a elaboração de um relatório definitivo do INSSA e que depois retornavam para a própria comunidade, com quem se reuniram em oficinas. “No início nos chamou a atenção que quando perguntávamos sobre os problemas de saúde identificados por muitos moradores, eles nos diziam que o principal era que não morriam mais de velhice. Era uma simples observação que significou muitas coisas.” A média de casos de vários tipos de cânceres nessas localidades foi muito maior do que em outras na mesma região ou em nível nacional. Aumentaram também as médias de doenças neurológicas, endócrinas, respiratórias, dermatológicas, abortos espontâneos e malformações. Que casualidade, diz Verzeñassi, que o surgimento dessas patologias “coincida temporalmente com a instalação de agroindústrias dependentes de agroquímicos. A mesma coisa acontece em Neuquén, na região de Vaca Muerta, em Catamarca ou em San Juan, ou seja, nas áreas de mineração. O modelo extrativista como um todo é a causa de tudo isso. Cai na vista. Basta sobrepor mapas e comparar os dados. Mas mesmo assim muitos ainda não querem enxergar isso”.

 

Os acampamentos sanitários incomodavam. Aos empresários do agronegócio, em primeiro lugar. Também aos líderes políticos de todas as colorações. “E o mais lamentável é que também afeta setores das universidades públicas.” Em 2019, foram suspensos pelas autoridades recém-eleitas da universidade. E Verzeñassi foi destituído da responsabilidade acadêmica da prática. “A crueldade com a nossa equipe (outros quatro colegas foram diretamente afastados dos seus cargos) já era anterior, mas foi se intensificando. O problema é que o Laboratório de Toxicologia da Universidade de Rosário trabalha para a Casafe [Câmara de Saúde Agropecuária e Fertilizantes], ou seja, para os vendedores de agrotóxicos, e para diversas indústrias poluidoras. O campo acadêmico também é um território em disputa sobre o modelo.”

 

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Verzeñassi fala de uma “geopolítica da doença”. “Há um bom tempo venho trabalhando nessa categoria, nesse campo”, diz. E destaca que as patologias que sofrem hoje na América Latina em decorrência do modelo produtivo foram planejadas. Em meados da década de 1960, começaram a se ver no Norte enriquecido as consequências da reindustrialização forçada iniciada no pós-guerra. Os problemas de saúde observados eram tão novos quanto grandes. “E decidiram que, para manter o modo de produção que os enriqueceu, mas ao mesmo tempo os prejudicou, deveriam transferir os custos mais nocivos para outro lugar. Foi assim que começaram a transferir suas indústrias mais sujas. Eles precisavam de duas coisas básicas: disponibilidade de terras férteis e água. Nos Estados Unidos, disseram que o país tinha a obrigação política e estratégica de garantir o acesso a regiões onde pudessem obter rapidamente ambos os recursos. Como tinham pouco território na África para aproveitar, vieram para a América Latina. A água é um recurso escasso em todo o mundo e essencial para todas as atividades extrativistas. Havia água em abundância por aqui.”

 

O planejamento é feito nos anos sessenta, e uma década depois começam a operacionalizar “a transferência do modelo”. Havia um obstáculo nada desprezível: a existência na América Latina de fortes movimentos sociais e políticos, de alguns governos nacionalistas e de “universidades com capacidade de desenvolver o pensamento crítico e a vontade de promover uma ciência que ainda não estava ‘mercenarizada’. Esses focos de resistência tinham que ser eliminados, os governos controlados, os países de tal forma endividados que perdessem toda a capacidade de autonomia”. Nos anos setenta e oitenta, colocaram o plano em prática.

 

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Junto com os processos de privatização, na década de 1990 começam a ser implementadas as tecnologias transgênicas, de mãos dadas com uma nova configuração socioeconômica e política nos territórios latino-americanos. Em dezembro de 1991, técnicos do Banco Mundial (BM) propõem, em um memorando interno, a necessidade de incentivar e financiar a transferência de indústrias sujas do Norte para o Sul. Lawrence Summers, seu economista-chefe, assinala Verzeñassi, “afirma que essa transferência baseia-se em três pilares: que os territórios do Terceiro Mundo são pouco poluídos; que, como são em geral de populações que morrem mais cedo por outras doenças e têm menor expectativa de vida do que as do Norte, não verão os impactos do modelo, e que os danos causados pela poluição têm de ser analisados em termos de lucro perdido: um câncer de próstata, por exemplo, é mais prejudicial em uma população com alta expectativa de vida do que em outra onde a expectativa de vida é baixa”. Nesses três princípios, diz, baseia-se a geopolítica da doença.

 

Dois anos depois desse relatório interno, foi divulgado outro documento do Banco Mundial. Chamava-se “Investir em saúde” e definia a organização dos sistemas de saúde latino-americanos a partir do deslocamento do Estado da garantia do processo assistencial, mas não da obrigação de financiar o setor privado. “Ando com esse documento para cima e para baixo, porque é fundamental para entender o que está acontecendo agora”, conta o médico. “É um documento em que dizem ao setor privado: “Se você tem dinheiro, invista em ferramentas de diagnóstico, em tomógrafos e em aparelhos avançados”. E ao Estado dizem: “Você investe o mínimo de recursos”. A própria Organização Mundial da Saúde, na época presidida por ex-funcionários do Banco Mundial (hoje é governada pelo filantrocapitalismo), passa a apoiá-la em termos menos bestiais. A Colômbia foi o paradigma desta concepção”.

 

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Nos mesmos anos, o Banco Mundial começou a financiar obras de infraestrutura necessárias para a instalação no Sul de indústrias poluentes que no Norte eram cada vez mais contestadas pelos crescentes movimentos ambientalistas. Quatro áreas-chave são identificadas: água e saneamento; energia; transporte e telecomunicações. O Banco Mundial empresta dinheiro aos Estados do Sul para realizar macroprojetos que beneficiam basicamente as transnacionais europeias e estadunidenses e que endividam os países que os implementam: o círculo se fecha por todos os lados. “Em 24 de março de 1996, uma data simbólica por ser o 20º aniversário do golpe na Argentina, o Banco Interamericano de Desenvolvimento [BID] reuniu-se em Buenos Aires”, recorda Verzeñassi.

 

“Tratava-se de financiar megaobras de infraestrutura para a integração regional sul-americana. Na reunião foram anunciados investimentos entre 16 bilhões e 20 bilhões de dólares por ano durante uma década. Depois seriam estendidos por mais uma década. E em quais setores foram alocados os investimentos? Nos quatro que o Banco Mundial havia identificado anteriormente para que as transnacionais pudessem facilitar sua instalação plena nessas terras: água e saneamento; energia; transportes e telecomunicações”.

 

Na véspera da reunião do BID, esteve em Buenos Aires o subsecretário do Tesouro dos Estados Unidos, convidado pela Bolsa de Comércio da Argentina. Era ninguém menos que Summers, aquele economista-chefe do BM que anos antes havia apoiado a transferência das indústrias poluentes do Norte para o Sul. “Um cúmulo de coincidências? Tanto quanto o fato de ser justamente nos povoados fumigados que se concentra o maior número de casos de câncer em relação à população”.

 

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Em 2000, foi criada a IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana), que mais tarde passaria a se chamar Cosiplan (Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento). “Tratava-se de um extraordinário planejamento da transformação da América Latina em um grande mapa de recursos e corredores bioceânicos para garantir a circulação dos produtos a serem extraídos”, diz Verzeñassi. E acrescenta que o terrível do caso é que participaram desses projetos tanto os governos de direita, “o que era facilmente previsível”, quanto os progressistas. “Uns e outros fazem parte da mesma lógica. Os governos progressistas e boa parte dos setores que os apoiam estão com a cabeça formatada com essa ideia que nos foi imposta de que devemos crescer e crescer. E para sustentar essa lógica muitas vezes recorrem a práticas tão perversas quanto as da própria direita.

 

No Equador, Rafael Correa entregou partes de territórios protegidos a mineradoras e petroleiras chinesas, com a força militar do Estado reprimindo as populações indígenas; no Brasil, a desenvolvimentista Dilma Rousseff venceu a disputa interna contra a ecologista Marina Silva; o kirchnerismo desenvolveu a mineração a céu aberto, o hydrofracking, e não questiona essa aberração que tem sido chamada de ‘hidrogênio verde’. O progressismo também tem sido responsável por práticas extrativistas que poluem a água, envenenam os territórios, mudam a produção de alimentos, empurram as populações dos territórios rurais para as periferias urbanas e destroem pequenos e médios produtores”.

 

Aqueles que destituíram Verzeñassi de sua cátedra em Rosário e acabaram com os acampamentos de saúde foram as autoridades universitárias que respondem a partidos de “esquerda”. E “progressistas” eram alguns dos que tornaram impossível a vida ao biólogo Andrés Carrasco, ex-presidente do Conicet (Conselho Nacional de Pesquisas Técnico-Científicas) da Argentina e diretor do Laboratório de Embriologia da Universidade de Buenos Aires que, nos anos 2000, denunciaram os efeitos do glifosato na saúde humana e ambiental e trabalharam entre as populações fumigadas.

 

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Verzeñassi diz que “a conclusão natural de tudo isso” é que a saúde só pode ser pensada em suas dimensões socioambientais. “Uma pessoa saudável em um território doente é um oxímoro. Como trabalhador da saúde, não posso pensar em categorias individuais, mas em sujeitos vinculados a um território, a outras pessoas e a um contexto social, político e econômico. Tudo isso não nos é explicado nas faculdades de Medicina. Ao contrário, a cultura do campo da saúde reproduz os mecanismos do modelo. Às vezes os colegas que estão no território não veem esses problemas, outras vezes são participantes necessários, porque o médico é o dono da fazenda ou porque trabalha, de uma forma ou de outra, para o dono da fazenda”.

 

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Verzeñassi acreditava que, da pandemia, “a humanidade sairia melhor. Sinceramente, pensei que aconteceria aquilo que Walter Benjamin falava: que haveria a consciência de que o freio de mão tinha que ser puxado ao processo de destruição dos territórios pelo avanço sem fim dos modelos agroindustriais que devastam tudo, até o nosso sistema imunológico. Pensei que, finalmente, não morreria sem ver isso acontecer. Mas com o tempo percebi que vou morrer sem vê-lo”.

 

A pandemia trouxe à tona a cumplicidade dos poderes políticos com o extrativismo, aponta. E agora insiste-se na mesma tecla. Às vezes com eufemismos hipócritas, como os de um Bill Gates jogando pequenos espelhos na atmosfera para conter as mudanças climáticas ou as autoridades de um estado americano sobrecarregado pelas altas temperaturas que saíram para pintar as ruas de branco com uma tinta especial para reduzir a emissão de calor do asfalto. “Nunca passou pela cabeça deles que o urbanismo que continua sendo promovido vai na direção da depredação, que contribui para as mudanças climáticas, alimenta o consumo de energia e promove o isolamento humano. Em tal contexto, como não ficar doente?”

 

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Verzeñassi não quer cair na atitude de resignação de um James Lovelock, aquele médico americano que visualizou a Terra como um sistema capaz de se autorregular, mas que estava chegando ao limite de sua capacidade. “Depois de insistir e insistir que tinha que mudar a cabeça e que ninguém lhe dava bola, jogou a toalha e disse que se era para arrebentar, tinha que ser bem feito. Propôs então desenvolver a fundo a energia nuclear, a única capaz de sustentar os volumes de consumo de energia que esse modo de vida tem. Não que defendesse a energia nuclear, como foi dito. É que ele tinha se rendido”.

 

Resistir “em termos amorosos” é a fórmula de autodefesa que Verzeñassi propõe. “Acho que devemos visar o mutualismo, a cooperação, para recuperar o que como humanidade nos fizeram perder: a sensibilidade e a capacidade de nos emocionar. Não sei bem como fazê-lo. Por enquanto, denunciando de maneira incansável esse modelo e promovendo outras práticas. E se tiver que perder, perder com dignidade”. Uma coisa é certa: se a humanidade chegou até aqui, diz ele, “não é por causa da competição, do livre mercado ou de qualquer processo darwiniano. Historicamente, as estratégias de cuidado da vida e da saúde em nossas sociedades eram estratégias coletivas e comunitárias. E é para lá que teríamos que voltar. Talvez fazendo como as amebas, essas formas de vida – as mais antigas do planeta – que avançam lançando pseudópodes que ao longo do seu caminho vão incorporando elementos do território que atravessam, em um movimento permanente de diálogo e cooperação. Parece estúpido, mas não é”.

 

Atrás de água

 

“O extrativismo é dependente de químicos, mas também de água. O que o hydrofracking, o lítio, o hidrogênio verde, a megamineração, as fábricas de celulose, a agroindústria de commodities e a agroindústria florestal têm em comum? Que nenhuma dessas atividades é possível sem água e que todas são fenomenais consumidoras de água. Há uma razão pela qual as transnacionais se instalam sobre o Aquífero Guarani, uma das maiores reservas de água subterrânea do planeta. Hoje, a América Latina é um território em disputa entre o poder econômico centralizado americano-europeu e o poder econômico centralizado da China. E ambos lutam pelo acesso à água. O terrível é que muitas vezes a entregamos de bandeja. Em Chubut, uma Província que tem sérios problemas de estiagem, acabaram de dar à Austrália centenas de hectares que estão sobre um dos seus principais rios subterrâneos”.

 

Doença e liberdade

 

“Quando predomina a doença, o que se perde, entre muitas outras coisas, é a liberdade. A geopolítica da doença é a utilização de um modelo de produção que prejudica a saúde a partir da convicção de que garante a perda da liberdade dos indivíduos e a possibilidade de avançar sobre corpos e territórios. Eles estão absolutamente conscientes de que precisam da doença como ferramenta de limpeza”.

 

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